top of page

Travessia urbana: o ouro em tons de cimento, areia e piche


Assim como ocorrido em Serra Pelada, no século passado, centenas de homens de todas os cantos do Brasil rumaram para longe de suas famílias em busca de uma chance que poderia mudar suas trajetórias


Era final da década de 1970. A cidade de Marabá, ao sul do Estado do Pará, então conhecida por ser ponto de encontro dos grandes rios- Tocantins e Itacaiunas- sofreria uma breve revolução dourada, fato que marcaria a história do Brasil.

Em uma fazenda, no meio da selva amazônica, no território marabaense, o vaqueiro Ademir cavalgava despretensioso, em marcha tranquila, a contemplar a vegetação da fazenda de seu patrão, o senhor Genésio. Em meio à mata e uma coleção de montanhas, o peão avista um terreno distinto, diferente. Tratava-se de uma serra sem vegetação, pelada. O espanto e a curiosidade devido a diferença provocada pela natureza entre os cerros fizeram com que seu Ademir guiasse seu cavalo em direção ao topo da serra. Ao chegar lá, os mais variados tons de verde, pássaros, montanhas e o azul do céu foram moldura para aquela pedra que reluzia em feixes amarelos: era ouro!

Milhares de homens, em todos os cantos do país, escutariam o grito do vaqueiro. A partir daquele momento se constituiria a Serra Pelada, considerada a maior cava humana de garimpo manual do planeta.

Mais de quatro décadas depois, no dia 16 de dezembro de 2014, em uma tarde chuvosa, Santa Maria, no centro do Rio Grande do Sul, teria o estopim para uma série de mudanças também importantes para este canto do Brasil. Era o início das obras da Travessia Urbana no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). 14,7km de rodovias federais que cruzam o município, da ponte do Arroio Taquara até o trevo do Castelinho, receberiam 19 viadutos e pontes, acostamentos, retornos e duplicações de vias.

Milhares de homens, em todos os cantos do país, teriam conhecimento desta revolução que se aproximava. A partir daquele momento se constituiria um novo formigueiro humano, a procura de oportunidades.

Se na década de 70 o futuro reluzia em tons dourados, em 2014 os interesses seriam construídos, pedra sobre pedra, junto ao negro do asfalto. Em comum dessas épocas distintas podem ser listadas a distância da família, os materiais de trabalho e, sobretudo, as condições humanas. Uma pausa: na Serra Pelada¸ por ficar em uma zona de proteção militar, as atividades só poderiam iniciar após as 8h, quando tocasse o hino nacional. No Coração do Rio Grande o start é dado antes, para alguns às 7h, para outros às 7h30min. Em partilha, o soar de 18h, seja na Serra Pelada ou na cidade da Boca do Monte, simboliza a volta para casa, ou melhor, para os alojamentos.


Começa a rotina


O relógio marca 6h, o dia ainda não amanheceu. O Sol despede-se do Oriente rumo ao Ocidente. O despertador toca. É hora de acordar. De segunda a sexta-feira, os operários da Travessia Urbana de Santa Maria deixam suas acomodações nos alojamentos, espalhados pelos bairros da cidade, para irem até os canteiros de obras. Para alguns, o percurso até o trabalho é feito a pé, para outros é preciso esperar o transporte- uma Kombi que passa recolhendo os trabalhadores.

“O dia começa cedo, 6 horas tem que estar de pé. 7h30min é a entrada, a batida do ponto. Meio dia a saída do almoço. 13h estamos de volta e saímos às 17h30min. Isso de segunda a quinta-feira, na sexta muda o itinerário. Na sexta se trabalha uma hora a menos, então saímos às 16h30min. De segunda a quinta 9h trabalhada por dia, na sexta 8h,” explica o operário Odilson Silva da Silva, 55 anos.

Se “saco vazio não para em pé”, a concessionária responsável pelos serviços na cidade, busca atender aos seus funcionários quanto à alimentação. A empresa serve quatro refeições por dia, entre café, almoço, lanche e janta, conforme o especialista em solo, concreto e usina (fiscal), Ronivaldo Oliveira Santos, 48 anos- (em locais em que se trabalham mais de 10 pessoas há refeitórios).

“O café da manhã é servido sempre no que se chega, fica disponível até umas 9h. O almoço é feito no local. Pela tarde sempre temos direito a um lanche, um novo café, para reforçar. E, ao fim do dia, ganhamos a janta. Tudo é bem simples, arroz, feijão, massa, carne... Mas é o que precisamos. É bom”, afirmou.

Além da alimentação, os operários têm direito a todos os itens de segurança- obrigatórios, de acordo com lei 6.271 (Segurança e Proteção na Construção), como capacetes, protetores auriculares, máscaras, luvas, botas, coletes de sinalização, entre outros.

Além dos cinco dias previstos em contrato para o trabalho, por vezes os homens são convidados a fazer horas extras aos finais de semana. Mas, de acordo o operário Josmar Batista Dias, 57 anos, com a proximidade do final do ano o ritmo nas obras desacelera e os recursos passam a serem dosados. “Hoje em dia não fazemos mais horas extra, a situação financeira da empresa não é das melhores, mas teve época em que tínhamos a escolha de trabalharmos todos os dias, vender as folgas, no caso, e ganhar comissão. Era bom, pois em casa, no alojamento, não temos muito o que fazer!”Ele também conta que há folgas em dias de chuva, pois o clima potencializa as chances de um acidente.


Longe de casa


O peso das marretas, as mãos calejadas e os rostos marcados pelo sol e poeira são fardos leves para estes trabalhadores, comparadas as distâncias das famílias e a responsabilidade de colocar comida no prato de quem se ama.

Para Odilson da Silva, o “trabalho não compensa, mas é preciso e uma necessidade”. O operário Josmar Batista Dias e o fiscal Ronivaldo Oliveira Santos, que trabalham há 20 anos com construção civil, se dizem habituados já as dificuldades. “Eu não acho difícil. O corpo acostuma com o peso, com o cansaço. A gente acostuma até com a distância da família”, revela Dias.

Natural de Santiago, no Rio Grande do Sul, há oito anos longe de casa devido ao trabalho, sendo um ano e nove meses em Santa Maria, Silva desabafa: “temos que trabalhar para manter a família. Fico triste em pensar que meus filhos convivem mais com os vizinhos do que com o pai. Mas é preciso! Meus filhos mesmo, quando eu saí de casa (para trabalhar) eram crianças, hoje já estão criados. Não participei de alguns processos, não vi muito crescerem. Escola, namorinhos eu acompanhei de longe. Minha mulher foi mãe e pai na maioria das vezes”. A dona do coração do Odilson há 28 anos é Tânia Silva, com quem teve os filhos Elivelton (16), Cristian (17), Bruna (20) e César (22).

O drama familiar se repete com Josmar Dias, natural de Encruzilhada do Sul, também no Rio Grande do Sul. Ele voltou ao Coração do Rio Grande, após o período de férias perto da mulher Elza -por quem se diz apaixonado há 37 anos- e da filha Sandi. O trabalhador comenta que há dias em que “a saudade aperta”. O operário emocionado, revela que há anos carrega uma ferida; a perda do filho Josimar Edinei Dias:

“Cheguei a me culpar por não ter estado perto, por ter escolhido essa vida, mas é preciso. A gente vai onde tem oportunidade. Não ia adiantar ficar em Encruzilhada do Sul sem trabalho, sem sustento para a família”.

Cerca de 5 mil km distante de casa, o paraense, Ronivaldo Santos, que foi com a família aos seis meses para a cidade de Oiapoque, no Amapá- município brasileiro localizado ao extremo norte e que faz fronteira com a Guiana Francesa- está em Santa Maria há dois anos e oito meses Ficar longe da família não é fácil, mas ele aprendeu a lidar com essa falta com a experiência. Segundo Ronivaldo, quando era jovem chegava ficar angustiado por um contato, mas compreende a distância e busca afastar a saudade com mensagens pelas redes sociais todas as semanas:

“Vejo meus familiares só quando estou em férias. De lá (Oiapoque) até a França são 8 horas de voo direto. É mais perto eu ir para a França do que vir para cá, são mais de 10 horas de Santa Maria até Oiapoque, em voo direto, cinco mil km” brincou.

Com o pretexto de motivar os funcionários a construtora concede passagens, uma vez ao mês, de ida e volta, para que os eles possam ir visitar as famílias- seja onde for. Alguns, como é o caso de Josmar, decidem visitar a cada 15 dias e, portanto, arcam com suas despesas. “Para mim vale a pena. Nenhum preço de passagem é tão valioso quanto estar com a mulher e com a filha, destacou sorrindo”.


O verdadeiro ouro

Longe de casa e sem o afago de quem se ama os trabalhadores da Travessia Urbana constroem novos laços firmes como a rodovia. Se a convivência no início é complicada, logo se transforma em farra, em alegria.

A afeição faz que nomes e sobrenomes se percam e deem lugar aos apelidos: “em obra é difícil quem não tenha um apelido. Por aqui ninguém se conhece por nome, só pela brincadeira” relata Odilson da Silva, que ainda em Santiago, ganhou o apelido que leva até hoje, “Tininho”. “Não sei o porquê de Tininho. Essas coisas a gente não escolhe, escolhem para nós”. O amigo Josmar mexe com o colega: “é Tininho, pois está sempre tinindo”, seguido de uma gargalhada.

A predileção pessoal seja por um gosto musical ou comida, a verossimilhança da aparência com algum personagem caricato da dramaturgia e a forma de tratamento para com os outros são determinantes para os rótulos. Para o seu Josmar, ou melhor o Cebola, a escolha foi fácil: “minha comida preferida é cebolinha frita. Por mim comeria no café, almoço e janta. Um dia eles (os colegas) descobriram... Ai me deram o apelido. Não tem como escapar”.

O especialista em solo, concreto e usina, Ronivaldo Oliveira Santos, está como fiscal pela terceira vez nas obras. Assim como cargos também soma vocativos. “São partes de mim, do meu currículo. É o que eu levo das construções”, comenta ele que é chamado de Jack. “Eles (os outros operários) dizem que eu sou uma cópia mal feita do Jack Chan. Isso é inveja da minha beleza, do meu charme”, brinca.

Jack também disse que essas brincadeiras ajudam a aliviar a tensão e manter o ambiente bem humorado nos canteiros. De acordo com ele, a relação entre todos é vista como uma família. Outro ponto destacado é a empatia: ”muitos fiscais que vêem não sabem lidar muito bem. Antes de eu ser fiscal eu fui construtor. Eu venho com duas mentalidades. Trabalho com parcerias, com amizades. Eu trabalhei fazendo tudo isso. Em qualquer segmento se você não formar parcerias, dificilmente você vai sobreviver e vai crescer. Hoje sou desprovido do egoísmo. Tem pessoas que batem no peito e falam: eu estou aqui há 20, 30 anos. Mas não é assim que as coisas funcionam”, pontua.

Mestres em erguer vigas, solidificar paredes e abrir caminhos os trabalhadores deixam pela estradas mais do que acessos e construções, deixam amigos: “fiz muitos amigos nessa empreitada. O padrinho, um homem veio bueno, gente fina é o maior deles. Mantenho contato sempre com ele. É um irmão que conheci na obra da RS-386, em 2011, 2012. Além de construir viadutos eu também construo amizades”, ressalta Cebola.

Três décadas após o início da saga pelo ouro, no princípio do século XXI, findam-se as explorações douradas em Serra Pelada. O distrito, hoje no município de Curionópolis resguarda a saga de uma massa de homens pela corrida do ouro no Brasil e coleciona histórias. Em Santa Maria, a Travessia Urbana não têm data para término, tendo em vista a instabilidade econômica que enfrentam o Estado e o País. O governo federal colocou a Travessia na lista de prioridades, o que deve viabilizar demandas, mas ainda não se sabe quanto será repassado no Orçamento de 2018.

Segundo o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT), em junho deste ano, se a obra seguir nesse ritmo atual, levará seis anos para ficar pronta, ou seja, será concluída no final de 2020,. Até lá, mais Tininhos, Cebolas, Jack’s, Carlos, Paulos, entre outros, irão migrar para a cidade da Boca do Monte atrás de oportunidades, atrás de seu ouro negro de asfalto.


Para a produção da reportagem foi permitido o contato apenas com três funcionários da concessionária, com tempo limitado e a entrevista sendo realizada em um canteiro de obra. Nenhum responsável pelas obras em Santa Maria quis se pronunciar.

Matéria produzida em parceria com o colega Luciano Souza para a disciplina de Jornalismo Literário em Setembro de 2017.

コメント


Um transeunte

 

  • Branca Ícone LinkedIn
  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Instagram B&W
bottom of page