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O poder da palavra

Atualizado: 24 de set. de 2021


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Em poucos segundos, uma enxurrada de significados, textos, fotos e referências. Mudam as letras, a composição das frases, as cores e enquadramentos, mas o sentido é o mesmo: “otimismo, o poder das palavras é o primeiro passo para a realização”. Alguns dias venho pensando sobre e estou cada vez mais sensível a este olhar.

Em um sábado a tarde resolvi me desafiar: voltar a fazer atividades físicas, que preteri ao trabalho. Acompanho pelas redes sociais pessoas que se tornaram “atletas”, mudaram hábitos e passaram a ter um estilo de vida mais saudável e desconectado. O sol baixo, a temperatura amena... Era minha deixa. Peguei o tênis, reforcei o desodorante, ajustei o relógio e sai. Logo na esquina cerca de 50 metros de casa... Putz, esqueci de passar protetor solar...Vou assim mesmo, afinal o sol começa a se esconder e os poucos raios que restam não irão me queimar (penso eu).


Mas e qual era a meta? 2km? 4km?! Apenas correr, pensar e me conectar. Nos primeiros trotes ainda contido para soltar a musculatura já sou tomado pela endorfina, hormônio liberado com a prática do exercício físico que ajuda a aliviar o estresse, a tensão e a ansiedade e traz a sensação de bem-estar. Aos poucos a respiração, os passos e o olhar ganharam ritmo. Puf, Puf, puf... o impacto do tênis com o asfalto ainda quente, as cores dos carros que rasgavam a avenida João Luiz Pozzobon, o colar que teimava sair pela gola. Eu estava correndo. Em poucos minutos, venci 2km. Queria mais.


A medida em que afinamos a sintonia das pernas com a cabeça, o ambiente se torna casual e descortina para uma realidade de sonhos, metas e expectativas, que estavam adormecidos ou em “stand by”. A sensação de liberdade talvez causada pela dificuldade de oxigenação de quem estava retomando as atividades físicas convidam para uma conversa do eu consigo mesmo.


Próximo ao Santuário de Schoenstatt, na avenida Dores, reduzo o ritmo. Passei a pensar em todas as possibilidades trazidas no percurso. Alguns metros, jovens andam de skate sem o compromisso de acertar. Ao lado, pais atentos em cada movimento contam histórias e se divertem. Mas ali estava ele. Quase escondido, atrás de uma parada de ônibus, sentado em degraus gastos pelo tempo. As vestes simples, a aparência cansada repousava os olhos em um livro seguro por mãos firmes e machucadas de empurrar um carrinho de lata, quase vazio. Aquilo me chamou a atenção, mas não quis ser indelicado. Segui minha rota. Fui até o Parque Itambé, no centro de Santa Maria, e voltei.


A cabeça dividida entre o que acabara de ver e o que projetava para o futuro. O relógio marcara 4km em pouco mais de 40 minutos divididos entre trotes, corrida e caminhada. Para minha surpresa, ele ainda estava lá. A concentração em cada palavra, o compromisso com as linhas, parágrafos e capítulos fazia aquele senhor franzir a testa e respirar com o peito aberto, fundo, como um alívio. Quando estou próximo, ele se levanta, recolhe o livro, reverencia aos céus, como quem quer agradecer, guarda a biografia em uma espécie de bolsa feita com um saco de estopa e segue seu destino a empurrar o carro de lata, com materiais recicláveis.


Apresso meu passo, pois queria cumprimentar e conhece-lo. “Como o senhor consegue?” - pergunto a ele, que pareceu não se importar com a minha presença ou questionamento. “Digo...Ler em meio ao caos, barulho de carros, crianças, cachorros é desafiador”, emendei. Mesmo caminhando, ele ajeitou a sacola, mudou o apoio das mãos, sorriu e disse, “quando estou com ele não penso em nada”.

“Ele? Perdão. Não lhe entendi”, respondi.

“Eu gosto de ler a Bíblia. Já li todo o antigo testamento”, sorriu, mostrando o orgulho do feito.

“Que legal. Parabéns! Fico feliz com o amigo... Há muito tempo o senhor lê a Bíblia?”.

“Comecei há alguns dias, mas não parei mais. Tenho melhorado muito. É um presente de uma amiga. Quero ler todo”, complementa, à medida em que reduz o passo.


Como jornalista sou curioso e apaixonado por histórias. Vi que ele estava apressado. De forma sutil, mas direta... “E o que te levou a ler a Bíblia?”

Um pouco sem jeito, ele coça a testa e sorri para o chão. Enquanto levanta o rosto, com a humildade de reconhecer erros e a bravura para corrigi-los, ele revela: “Não fui bom pai e marido. Precisei perder a minha família para mudar. Estou (re)começando, com a reciclagem. Acredito na palavra, tenho fé e determino que tudo vai melhorar”.


Em um dos entroncamentos mais movimentados da cidade, onde repousa o Ícaro, monumento do artista plástico Juan Amoretti, - que representa a busca do sonho, a garra do povo santa-mariense- ele se despede quase ofegante enquanto fazia força para atravessar a rótula e vencer o meio fio da calçada. “Agora preciso ir. Meu amigo Gilmar está me esperando. Não posso perder a oração das 19h. Firmei compromisso”.

“Está certo. Vai lá! Um forte abraço, meu amigo. Te cuida”, retribuo.

“Foi um prazer. Vai dar tudo certo!".

Vai sim, meu amigo! 30 minutos depois concluo meu trajeto. 7km de saúde, resiliência, conexão e a certeza de que as palavras tem poder. Ah o pescoço queimado, me lembram...Da próxima vez não vou deixar de passar protetor solar.

 
 
 

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