O domador de papel
- Lorenzo Franchi
- 2 de ago. de 2016
- 3 min de leitura

Tenho feição por atividade física. Hora ou outra, desprezo uma carona, um ônibus, por minutos em consonância com meus fones, minhas músicas, meu ritmo e o mundo. Ver a vida que se descortina em frente, os frames que se formam, as nuances que se fragmentam. Isto enriquece.
Voltava para casa após uma semana cansativa. A pasta pesada, os sapatos apertados, a cabeça cheia... A predileção por surpresas me leva a escolhas espontâneas. Troquei de rumo. Optei por ruas alternativas, vias as quais era mais um estranho. Na metade do trajeto do centro até minha casa, me prendo a observar um senhor. A força, aparente física, para um homem já de idade, comparado ao seu porte, talvez um metro e sessenta, me fizeram baixar o volume da rádio, para em olhos e ouvidos sorver sua presença.
Os passos eram rápidos, porém pequenos. Mas engana-se quem pensa que é por pressa, é “para não perder o pique”. Franzino, pele com traços do tempo, marcas do trabalho. Características que se confundem com milhões de brasileiros.
A ponte que liga Santa Maria a Serra, foi o ponto de partida da conversa. De modo algum forcei. Apressei-me para acompanhá-lo e, como quem não quer nada, puxei papo: “o senhor é rápido, hein!?”. A surpresa no olhar, seguida de um sorriso, foram à deixa para esta nova amizade.
O inquieto catador de papel que domava cavalos, hoje conduz carrinhos. Ou, reboque da felicidade, como ele o chama. A enxada que abria a terra e semeava um futuro, hoje colhe. Ele, o peão, como é conhecido, tem nome, José.
Estava fascinado com o ser humano que acabara de socializar. Em pouco mais de trinta minutos o senhor me fez ouvidos. O carinho que projetara com ferro e tela para “ter o que fazer as tarde”, os amigos do campo, o amor pelos cavalos, pela lida (lavoura) e o sentimento familiar. Todos capítulos desta história.
O peso das escolhas. O sacrifício em prol dos filhos. A infância sofrida, pobre, do chão batido dos pagos dos pampas de Bagé- que não deixara saudades- a fartura de Santo Ângelo e as lembranças de Porto Alegre.
Este ancião de 70 anos mostrou-me que a vida assemelha-se à domar cavalos, afinal, “não pode baixar a cabeça, se não, o tombo é certo”. Ao contar dos amigos e das aventuras em mais de quarenta anos de trabalho, sorriu. Mas, ao falar dos dois filhos, chorou, porém seguiu em frente. A voz tremula de emoção sussurrou: “eles mereciam um futuro melhor do que o meu. Eles são pais melhores do que eu”. Para completar, seu José, já cabisbaixo, revelou, “há cinco anos não tenho mais contato, nem por telefone”- para fugir das dificuldades e buscar um futuro melhor, os filhos foram morar com os padrinhos em Porto Alegre. Hoje, um tem 34 anos, é casado e tem uma filha; O outro tem 23 anos e está cursando Direito.
Estendi a mão, ou melhor, as duas. Dei um abraço. Era o mínimo que eu poderia fazer. Desejei esperança.
Tenho no meu íntimo que sorrisos podem ser forjados, mas as lágrimas são conquistas. Lágrimas é a comunicação intima do olhar com a alma transparecendo para o ser.
O Sol já se escondia atrás das aroeiras, o céu ganhava tons escuros e eu cheguei ao meu destino. Olhei-o, sorri e me despedi. Antes mesmo que pudesse dar um passo além, ele me reverencia e diz: “foi um prazer, meu jovem. Se quiser matear, moro na Rua do Gaúcho, em um chalé azul, ao lado da igreja”.
- Pode deixar, seu José. Vou sim.
E como este "Domador de Papel " me alertou, não vou baixar a cabeça, vou pegar os arreios e domar meu destino.
Commentaires